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LAMPIÃO E LANCELOTE


Texto e ilustração
Text and Illustration
Fernando Vilela

CosacNaify, 2006

 

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O livro da cavalaria e do cangaço

Obra poética e visual de Fernando Vilela promove encontros imaginários entre Lampião e Lancelote

Alexandre Pilati

Especial para o Correio

Lampião e Lancelote (CosacNaify, 2006) é um daqueles objetos de arte que chegam a nossas mãos e resistem a qualquer tipo de classificação. Embora esteja encaixado no catálogo de infanto-juvenis da editora, certamente agradará também ao público adulto. Embora narre uma história, mesclando poesia e prosa, é, sobretudo, um belíssimo livro de arte. Uma coisa é certa: não há como não admirar a publicação pelo cuidado editorial e pelos encontros que promove entre tempos, espaços, personagens, artes, culturas, gêneros e técnicas.

A obra traz um enredo simples, mas de alta densidade simbólica. A medieval fada Morgana lança um feitiço que conduz o cavaleiro Lancelote, da Távola Redonda do rei Arthur, a uma viagem que o faz atravessar tempos e espaços. O cavaleiro, então, desembarca no século XX, no sertão nordestino, onde encontra o Rei do Cangaço, Virgulino Ferreira, o famoso Lampião. Confrontados os dois "heróis", dá-se um duelo que começa em briga e termina em festa. Aventura, portanto (e das mais saborosas), é o que se encontra no livro.

Aventura também foi a que se propôs o próprio autor na pesquisa e na execução do projeto. Fernando Vilela é premiado ilustrador e artista plástico. Com Ivan Filho-de-Boi (Cosac Naify, 2004), escrito por Marina Tenório, ganhou o prêmio Revelação Ilustrador 2004, da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil). Entretanto, em Lampião e Lancelote , pela primeira vez, ele se aventura como autor literário. O resultado é excelente para um estreante. A narrativa é leve, descontraída, sutilmente bem-humorada e acessível. Vilela mantém rigoroso respeito aos parâmetros das influências literárias que buscou - o cordel e as narrativas de cavalaria - revigorando-as com um léxico atual e significativo. O texto destaca-se de suas fontes populares sem negá-las, artificializá-las ou torná-las meras notas pitorescas e usa, com adequação, nos momentos certos, a sextilha heptassilábica do cordel ou o parágrafo altissonante do romance de cavalaria.

As ilustrações também são fruto de extensa e minuciosa pesquisa do autor. Para a elaboração das ilustrações do personagem do cangaço, Vilela valeu-se de pesquisas de xilogravuras populares, cordéis de Lampião e do contato com as verdadeiras indumentárias dos cangaceiros, da coleção de Frederico Pernambucano de Mello, exposta na Mostra do Redescobrimento. A composição gráfica do personagem Lancelote foi baseada em observações e pesquisas no Metropolitan de Nova York, nos gabinetes de estampas da Biblioteca Nacional de Paris e nas coleções de iluminuras medievais da British Library em Londres. As técnicas utilizadas pelo autor, extremamente adequadas à intenção expressiva da narrativa, são os carimbos e a xilogravura. Os primeiros, utilizados na construção dos personagens, são feitos com gravuras em borracha escolar comum, com inspiração nos motivos bonáis e nas gravações decorativas de armaduras medievais. A segunda é utilizada para o painel de fundo do Nordeste e em alguns momentos no personagem Lampião.

O resultado dessa reunião de gêneros textuais, plasticidades, técnicas e culturas é um choque explosivo entre o "cobre", que representa o sertão das "armaduras" cangaceiras, e o "prata" das armas medievais. O fundo negro que aparece diversas vezes destaca os personagens do tempo e do espaço, reforçando a ambiência mítica do encontro entre Lancelote e Lampião, além de criar a sensação de sala de cinema. Sim, sala de cinema! Não bastasse a junção entre literatura e artes plásticas, o formato pouco habitual do livro (35 x 24 cm) cria a sensação de tela de cinema, que é reforçada pelos ângulos das ilustrações. Cinema, literatura, imagens... No confronto de elementos díspares, tudo é epopéia condensada, escrita e publicada num momento da história humana em que o épico não está mais disponível.

A obra de Vilela, enfim, por tudo isso, valoriza o livro como objeto de cultura. Nessa época em que há migração de informação para os meios digitais, Lampião e Lancelote mostra como há inúmeras possibilidades artísticas, ainda parcamente exploradas, para o livro como suporte de textos e imagens. Na área da literatura infantil e infanto-juvenil, a elaboração de textos literários/plásticos, vem cada vez mais se tornando uma alternativa produtiva. Na literatura adulta, nem sempre se tem visto bons resultados dessa junção entre artes plásticas e literatura em favor de um todo significativo. Normalmente o que se vê é apenas livro ilustrado, ou ilustrações acompanhadas de poemas. Lampião e Lancelote é uma outra coisa; uma terceira margem para o rio.

Pelo seu potencial artístico, pode-se perceber que Fernando Vilela anuncia inúmeros caminhos a serem desbravados pela literatura e pelas artes plásticas em conjunção. Caminhos que se ligam a toda uma tradição ocidental de diálogo entre a literatura e outras artes e que remontam a Mallarmé, a Apollinaire e aos dadaístas, por um lado e, por outro, às iluminuras medievais e as ilustrações dos cordéis nordestinos, de que tão bem se valeu o autor. Trata-se, portanto, nesse caso específico, não apenas de promover o prazer pelo objeto-livro, mas sim de explorar, em sentido amplo, as possibilidades artísticas, expressivas e críticas, inerentes a esse objeto que ainda respira, todavia pareça afogado no "infomar".

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira e poeta, autor de sqs 120m 2 com dce (NTC, 2004).



(Publicado no Jornal Correio Brasiliense em janeiro de 2007)

 

 
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