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Sempre é possível ler um cenário através de várias pistas. Contudo, temos que ficar desconfiados para não sermos capturados por certos “efeitos teatrais” que reduzem, e até mesmo limitam, a amplitude de nosso olhar: a comparação entre culturas não pode ser a ferramenta para entender a especificidade dos trabalhos que compõem a exposição Gravura Extrema. Temos que manter limpas as lentes da memória para percebermos a singularidade e intensidade das obras que esta exposição apresenta.
Gravura Extrema oferece um panorama do pensamento gráfico brasileiro, a partir do início dos anos 1930 até nossos dias. Não é de todo uma visão cronológica do desenvolvimento da linguagem da gravura; é um recorte, que propõe uma leitura cruzada de diversas abordagens artísticas. É uma exposição que mostra a pulsação da criatividade brasileira, construída nas interlocuções de diferentes posicionamentos artísticos.
Num país com pouco mais de quinhentos anos, único na América Latina com língua portuguesa, de tamanho continental, com intensa miscigenação de raças e culturas, a gravura, entendida como expressão artística, nasce moderna e erudita.
Isso quer dizer que a gravura brasileira mantém um diálogo com as novas questões artísticas da modernidade europeia (cubismo, surrealismo, abstracionismo). Ela antecipa-se na concepção de várias questões formais e conceituais em relação às outras modalidades artísticas: pintura, desenho e escultura. A linguagem gráfica no Brasil tem oxigênio próprio. Nota-se nela, uma precoce vontade de internacionalização de forma artística e conteúdo poético.
As primeiras décadas do século XX são marcadas por um intenso processo de industrialização e concentração populacional nas grandes cidades brasileiras. As tensões sociais são controladas e compensadas por pequenas e lentas conquistas. O Brasil revela-se um país de grandes desigualdades sociais. O meio artístico é pequeno e provinciano. À carência de meios para executar os trabalhos junta-se outra, a dos meios para fazer circular o trabalho. A gravura desse período oferece olhares para a realidade brasileira, para questões humanas e sociais. Neste cenário de escassez, é interessante lembrar que coexiste outra forma expressiva: a gravura de cordel. Ela é uma expressão popular, de raízes que remontam ao período medieval, especialmente ao provençal. São estampas de gravuras em madeira para ilustrar poemas rimados, de tradição oral (literatura de cordel), interpretada por cantadores. Trazida da Europa pelos colonos portugueses, funde um imaginário medieval com lendas, estórias religiosas com fundo moral, assuntos fabulosos, acontecimentos políticos ou diários. Foi assim chamada, por que os folhetos eram presos por um barbante ou cordel, pendurados e vendidos nas feiras.
A sombra é a memória da luz
Para o artista, a escolha da técnica da gravura vem das possibilidades expressivas que a linguagem gráfica oferece (linha, tramas, hachuras, jogos de claros-escuros). A gravura condensa a experiência do desenho, num processo que visa à intensificação expressiva da imagem. É uma arte silenciosa e quieta, em que a dualidade entre luz e sombra, entre dia e noite, morte e vida, confere ao tema um registro dramático. Na gravura o traço está impresso em sua materialidade. A gravura demanda ao artista, pelas características de suas diversas técnicas, uma exigência de se manter numa posição crítica de seu processo criativo – crítica da própria experiência de criação. É um modo de pensar as coisas, os temas, o próprio fazer, e não de demanda por obras múltiplas. As possibilidades técnicas de multiplicação de uma imagem não retiram aspectos de raridade, mas levantam indagações que a simultaneidade de olhares sobre a obra provocam: Onde está a arte? A qualidade artística está naquela unicidade? A gravura intensifica questões do desenho. Se no desenho a linha, a matéria física da linha, da mancha, quase se funde na estrutura do suporte, na gravura, o papel é suporte de uma materialidade evidente, com expressividade muito própria. Aqui (na gravura) a linha, a trama de linhas, os jogos dos claros e dos escuros, de hachuriados constroem sensações luminosas, são o acontecimento gráfico. Aqui se compreende que a arte não acontece na experiência, mas na realização.
Os artistas escolhem a linguagem gráfica para explorar o abundante tesouro das imagens que nascem das sombras, do espetáculo das sombras. Skia (do grego) é o nome da sombra e também significa vestígio. Os artistas sempre confiaram nas sombras. As sombras são repletas de pensamentos. As sombras são o meio do caminho entre percepção e pensamento.
Um se fazer na falta
Os artistas cujas obras compõem a primeira parte de Gravura Extrema, que chamamos de TRAMAS DA NOITE, têm uma formação marcadamente europeia e, de certa forma, erudita. Estão ali reunidas obras de Lasar Segall, Livio Abramo e Oswaldo Goeldi. Esse “trio” tem um pacto com a solidão como princípio do ato artístico; nos três há igualmente a exigência de uma dimensão ética do trabalho artístico, um inconformismo em relação ao que o homem fez de si mesmo.
Em suas obras está presente uma atitude de curiosidade intelectual, de interlocução, com mente aberta para novas maneiras de construir e representar o espaço, para a escolha de temas, no trato de diferentes densidades emocionais. Os artistas suprem a carência de informações, a falta de materiais e de meio para difundir seus trabalhos, nas discussões dos ateliês, e têm na ilustração de livros uma maneira de veicular seus trabalhos gráficos.
Lasar Segall (1891-1957) imigra para o Brasil em 1917, trazendo ao país sua experiência artística dentro do expressionismo. Vindo de Dresden (Alemanha), onde estivera ligado a grupo Secessão, Segall vai sendo “contaminado” pela realidade brasileira a partir dos fins dos anos 1920: os temas sociais (o mangue, a favela, a pobreza) passam a habitar a paisagem brasileira em sua obra. Oswaldo Goeldi (1895-1961) fora educado na Suíça e mantivera uma intensa interlocução durante toda sua vida com o artista expressionista austríaco Alfred Kubin, ambos admiradores de Edward Munch. Goeldi trabalha no Brasil marcado pelo simbolismo romântico alemão, com uma concisão de recursos técnicos, e visando potencializar a expressão gráfica: seus temas são a solidão, a noite, coisas abandonadas e esquecidas, seres solitários. Lívio Abramo (1903-1992) desenvolve uma poética vinculada a temas sociais. Tendo viajado à Europa nos anos 1950 (onde entra em contato com a arte não-figurativa), Abramo trabalha como ilustrador e jornalista.
A segunda parte da exposição, NOITES PARTICULARES, reúne uma nova geração de artistas que constroem seus trabalhos superando uma paisagem de escassez e de intensa politização, com poéticas que ora se aproximam do abstracionismo lírico, ora retomam as temáticas sociais; ambas as tendências evidenciam uma busca de singularidade e identidade, nas quais persistem poéticas marcadas por um recolhimento, um retiro ao íntimo.
O início do Modernismo brasileiro coincide com a efervescência política internacional e no Brasil. A década de 1930 tem no nacionalismo cultural um projeto político. Observam-se tendências realistas, regionais e sociais, e passa-se a buscar uma estética originariamente brasileira e, na esteira dessa proposta, a mensagem e o tema sobressaem-se com relação a outros aspectos da obra. O Expressionismo, entretanto, está presente numa figuração fantástica. Nos anos 1950 observa-se uma filiação artística (ética-estética) à obra de Oswaldo Goeldi nos trabalhos de jovens artistas como Marcelo Grassman, Darel Valença Lins, Poty Lazzarotto, Adir Sodré, Newton Cavalcanti, Iberê Camargo, entre outros. Aparentemente o pacto estético das obras desse período faz-se com um caráter humano, uma essência – a alma humana.
Tempos de Internacionalização
Com o início das Bienais, a partir de 1951, o ritmo e a direção da arte brasileira mudam. Inicia-se um período extenso de aceleração e de internacionalismo, que ameaça aquele projeto oficial de tendência nacionalista. É o segundo momento (depois da “Semana de Arte Moderna de 1922”) na arte brasileira em que a atualização de tendências é a pauta. Aqui, o debate entre figuração e abstração acontece com atraso de trinta anos em relação à Europa. O pensamento construtivo na arte brasileira apresenta uma densidade de questões que concentra várias das ideias modernas sob um grande conjunto de obras que impressionam pela qualidade das reflexões. Esse movimento dedicou-se pouco à gravura, provavelmente pelas características artesanais de sua fatura: os artistas passam a ter acesso a uma tecnologia industrial, incorporando novas formas de produção de imagens.
O abstracionismo informal foi um momento muito fecundo na gravura brasileira. São muito ricas as experiências plásticas transpostas para as gravuras, incorporando novos materiais e pesquisa. Novamente a gravura antecipa experiências visuais que influenciarão outras linguagens artísticas e, neste momento, é mais popular como experiência para jovens artistas que a praticam com frequência. Os resultados deram evidência internacional à gravura brasileira quando Fayga Ostrower recebe o prêmio na Bienal de Veneza de 1958. A abstração informal foi o momento no qual a arte brasileira olhou mais para fora do país, dialogando com movimentos internacionais, abordando questões universais da arte. Com o abstracionismo geométrico e informal, ela se afasta do projeto político nacionalista dos anos 1930 e 1940. Os artistas que estão vinculados a esse período são: Renina Katz, Fayga Ostrower, Anna Letycia, Edith Behring, Isabel Ponz, Anna Bella Geiger, Rossini Perez, entre outros.
Outras sombras, outras noites
O terceiro núcleo da exposição, chamado OUTRAS SOMBRAS, OUTRAS NOITES, abrange a abstração nas artes dos anos 1950, que representou outra abertura para interlocuções internacionais. Gradativamente a arte brasileira ganha mais visibilidade, a referência artística muda-se de Paris para Nova York. O meio artístico está mais aberto às novas ideias de arte. A Bienal de São Paulo estimula a modernização.
As muitas tendências artísticas que chegam em pouco tempo, através de grandes mostras, fragmentam as questões da arte, enfraquecendo compromissos históricos com o passado. Até o movimento abstrato (lírico e informal) encontramos uma tradição erudita que vai sendo abandonada, aos poucos, pela tendência da pop-art. Paulatinamente observa-se a mesma uniformização das tendências estéticas que ocorrera na Europa e nos Estados Unidos, acabando com a ideia de uma identidade nacional. A corrosão de valores universais e de autonomia da arte acentua-se, o imediatismo impõe-se. Observa-se que a técnica da serigrafia atenderá aos interesses dessas novas ideias, sendo utilizada intensamente, associando-se à fotografia e outras novas tecnologias, facilitando novas formas de reprodução de imagens.
É nesse ambiente cultural que o Brasil sofre um golpe militar (em 1964): instala-se, então, uma ditadura que iria durar vinte anos. As contestações que se espalham pelo mundo encontrarão aqui, na nova geração de artistas, através de formas simplificadas e diretas, veemência na crítica e nas ações políticas. Retirada da cultura de massa, o Tropicalismo é a visualidade que surge da leitura do país: moderno e marginal. A opressão política aumenta enormemente a partir de 1968. A arte conceitual objetiva a arte como ideia. Deste grupo de artistas destacam-se Roberto Magalhães, Antonio Dias, Carlos Vergara, Rubens Guerchman, entre outros.
Outra tendência que se observa no pensamento gráfico da época é uma busca de novas de fontes de criação a partir da cultura popular: signos iconográficos presentes no cordel, por exemplo, são reinterpretados por meio de um sistema de representação mais sofisticado. Gilvan Samico é com certeza o artista brasileiro que soube sintetizar melhor aspectos da cultura erudita e da popular.
Dentro dessa multiplicidade de tendências e de pactos poéticos, há trajetórias difíceis de agrupar, como é o caso de Artur Luiz Piza, Evandro Carlos Jardim, Maria Bonomi. Nas suas singularidades, esses gravadores criaram referências de postura artística para outras gerações. Num tempo em que a velocidade se impôs, surgem acostamentos, posições políticas que insistem na responsabilidade ética do fazer artístico. Não por acaso, diversos deles estão comprometidos com a formação e transmissão da arte.
A noite de alguns
A última parte da exposição reúne a maior parte dos artistas contemporâneos. O meio artístico de agora não é homogêneo, tem caminhos embaralhados: convivem nele posições antagônicas, desde aquelas que se isolam no território conceitual (escolhendo caminhos de experimentação), àquelas que ainda guardam um compromisso com a poética do particular (que têm um pacto com a subjetividade). Todas elas estão em cena; o cenário é formado por tempos misturados: de Rubem Grillo a Carmela Gross, de Fernando Vilela a Marco Buti, de Elisa Bracher a Márcio Périgo, vemos manifestações artísticas tão diferentes e assentadas em procedimentos tão distintos que se torna impossível falar numa tendência na gravura brasileira contemporânea.
Em alguns momentos o pensamento gráfico passa por ideias de expansão que ultrapassam os limites do processo: o ato artístico não está mais restrito ao suporte e pode ganhar uma dimensão espacial na qual vai interagir fisicamente com o espectador. Aparecem artistas que se utilizam de processos híbridos, empregando ora técnicas tradicionais, ora recursos técnicos de última geração. A gravura ganha novas escalas, monumentais, extremamente sensoriais e físicas (corporais) – nas quais questões formais competem, às vezes, com o conteúdo.
Gravura Extrema tenta fazer uma topografia das diferentes manifestações artísticas em torno de procedimentos gerados por imagens gravadas ou impressas. É uma extensa seleção de obras gráficas que percorre, a partir dos anos 1930 até nossos dias, as transformações pelas quais esta linguagem artística passou no Brasil. As leituras cruzadas das obras da exposição permitem uma visão enriquecida, de uma cultura em construção, com pacto fundado no humanismo.
Participam dessa exposição os seguintes artistas: Adir Botelho, Alex Gama, Ana Letycia, Anna Bela Geiger, Antonio Dias, Artur Luis Piza, Carlos Martins, Carlos Vergara, Carmela Gross, Cildo Meirelles, Claudio Caropreso, Claudio Mubarac, Darel Valença Lins, Edith Behring, Edith Derdyk, Elisa Bracher, Ernesto Bonato, Evandro Carlos Jardim, Fabrício Lopes, Fayga Ostrower; Feres Khoury, Fernando Vilela; Flávia Ribeiro, Francisco Maringelli, Frans Krajcberg, Gilvan Samico, Iberê Camargo, Isabel Ponz, Julio Plaza, Lasar Segall, Laurita Salles, Lena Bergstein, Lívio Abramo, Louise Weiss, Marcelo Grassman, Marcio Périgo, Marco Buti, Maria Bonomi, Newton Cavalcanti, Osvaldo Goeldi, Poty Lazzarotto, Regina Silveira, Renina Katz, Roberto Magalhães, Rossini Perez, Rubem Grillo, Rubens Gerchman, Rubens Matuck, Sergio Fingermann, Sheila Goloborotko, Silvia Mecozzi, Teresa Miranda, Ubirajara Ribeiro, Alberto Martins, Helena Fredi, Jacques Jesion, Ana Maria Maiolino, Maciej Babinski, Sérvulo Esmeraldo, Alex Fleming, Paulo Camilo Penna, Paula Almozara e gravuras de Cordel.
Sergio Fingermann
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