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O livro do tempo
Cauê Alves
Galeria Virgílio
São Paulo, 2007
De saída, a exposição de Fernando Vilela contradiz um chavão da gravura, o da reprodutibilidade. Seus enormes livros (200 x 200 cm) são peças únicas. Os volumes, realizados em chapas de pvc expandido, foram impressos a partir de apenas três matrizes. Elas funcionam como módulos e vão se combinando e recombinando de maneira lúdica e sem obedecer a qualquer geometria. O raciocínio modular proporciona uma diversidade enorme de configurações. A composição gráfica se estrutura por forças que variam de sentido e intensidade, sempre girando em todas as direções.
Se as imagens podem ser comparadas com a de um relógio, como se as tiras fossem ponteiros sobrepostos, o trabalho contraria completamente toda a regularidade e a repetição que o relógio implica. Ao folhearmos o livro temos uma experiência temporal bastante singular. É como se esquecêssemos o mundo exterior e mergulhássemos no trabalho. Seu tempo é não contínuo, nem homogêneo ou retilíneo e sim um tempo que dispensa a ordem cronológica. A primazia é dada ao aspecto gráfico, e não a uma suposta continuidade do movimento do tempo ou de uma narrativa qualquer. Mesmo porque há uma série de sobreposições que, mais do que espaciais, revelam simultaneidades de tempos. Estas são ainda mais evidentes ao contemplarmos os três livros abertos, que compõem um todo em que ordem e caos não podem ser compreendidos como opostos, mas como complementares, uma vez que estão integrados, assim como os vazios em relação às áreas impressas.
A escala dos livros é compatível com a de uma porta. Virar uma página é também entrar num outro espaço. A relação corriqueira com o livro, entretanto, é literalmente invertida – ele não está em nossas mãos, somos nós que estamos dentro dele, sugados em seu interior.
Mesmo que os livros obedeçam a um planejamento rigoroso, durante a realização do trabalho o artista incorporou alguns acasos. Isso também se deve a questões técnicas, como o ressecamento da tinta sobre a tela da serigrafia. Em geral, a irregularidade das manchas sobre a chapa foi mantida. Ainda mais por serem impressões artesanais e de grandes proporções como essas (que contou com uma equipe de seis pessoas), jamais seria possível cercar plenamente o imprevisível. Essa consciência dá mais vitalidade ao trabalho e evita que ele seja compreendido como se estivesse fora do próprio tempo de sua realização. Afinal, não se trata de um projeto que objetiva ser realizado sem surpresas e com exatidão – ao contrário, o imprevisto é parte constituinte do processo tanto quanto do fluxo temporal.
As chapas oscilam entre as mais silenciosas, com poucas áreas preenchidas, e as mais barulhentas, com várias sobreposições e excessos. Elas têm uma aparência ambígua: a impressão da imagem é feita em serigrafia, mas os veios da madeira – já que as telas foram realizadas a partir de xilogravuras – são tão visíveis quanto as ocasionais imperfeições. Há um aspecto precário no resultado final, como se fossem lambe-lambes, mas alguns brilhos logo desmentem essa sensação. O industrial e o artesanal se misturam, e a facilidade que a serigrafia denotaria é contrariada pelo processo trabalhoso que o tamanho exige.
Realizados no ateliê do artista na Barra Funda, em São Paulo, que fica diretamente voltado para a rua, os trabalhos se misturaram com o ritmo da cidade. Durante a impressão, as telas eram limpas na calçada, enquanto as provas secavam sobre os suportes para lixo e acabavam se mesclando com a sujeira urbana. Esse embaralhamento da imagem com o seu entorno também ocorre, de outro modo, nas gravuras em acrílico transparentes inclinadas em relação à parede. As imagens impressas, graças à iluminação, se projetam e se sobrepõem sobre outras a sua frente ou ao lado. Enquanto nos livros a sobreposição se faz num plano, aqui elas se expandem e ocupam o espaço tridimensional.
Independentemente do aspecto simbólico do livro, que se mistura com a história da humanidade e acompanha o homem ao longo dos tempos, o trabalho de Fernando Vilela estabelece certas relações complexas com o sujeito, com o espaço em seu entorno e com a cidade que vão além da contemplação e do mero reflexo. Nós nos envolvemos em seu trabalho a ponto de entrarmos no tempo dele, que é o mesmo que o nosso, mas que também parece nos conter e superar.
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