CAÇADA
PAULO MIYADA
Gotham City é um dos principais personagens das histórias em quadrinhos do herói Batman, ao lado de figuras carismáticas como Coringa e Mulher-Gato e outras nem tanto, como o Dr. Gelo e o Espantalho. Aparentemente uma versão sombria e violenta de Manhattan, a cidade de Gotham parece moldar-se em torno do herói, servindo-lhe de plataforma, labirinto, arma e antagonista, formada pelo jogo psicológico, visual e dinâmico entre o vigilante soturno e os elementos que habitam a ilha novaiorquina de ontem e de hoje.
Enquanto isso, do lado de cá do hemisfério, no trabalho de Fernando Vilela, não perambula a figura do Batman. Até aparecem sinais de Nova York junto aos de tantas outras cidades do mundo, mas o que predomina é a figura de São Paulo, metrópole moderna latino-americana que o artista paulista sabe apresentar como personagem.
É o que vemos clara e expressivamente na série de xilogravuras impressas sobre fotografias apresentada na Galeria Virgílio em 2010. Fernando pinça elementos da paisagem urbana selecionando aqueles que provocam maior atrito visual nos percursos pela cidade e os reordena com representações que misturam olhar fotográfico, recorte e colagem. Sua grande esperteza é notar que nem é preciso adicionar narrativas às cenas da cidade, pois, em sua mistura de ambição e descaso, São Paulo já se povoou de peças monumentais e desproporcionadas como o Elevado Costa e Silva – o Minhocão – e o emaranhado de fios elétricos suspensos (mal) amarrados e tensos entre postes. Na sua excentricidade, São Paulo já é personagem, e tanto as colagens sobrepostas em papel vegetal como as gravuras sobre fotografias de Fernando nos ajudam a percebê-lo, caso estejamos demasiado distraídos pelas contas a pagar e os horários a cumprir.
Com certo brio de super-herói, no entanto, Fernando não se contenta em enfatizar esse feito maravilhosamente desajeitado, mas almeja interagir com o personagem urbano e responder à sua escala. Para levar a gravura para o espaço urbano, em 2003, Fernando aproveitou a oportunidade de utilizar uma prensa obsoleta do inicio do século 20, de tipos móveis de madeira – utilizada para imprimir cartazes conhecidos como lambe-lambe – para multiplicar uma imagem ilimitadamente. Trocou o cliché tipográfico por uma chapa de compensado de mesma espessura, trapaceando a prensa mecânica para que imprimisse xilogravuras à velocidade da primeira era da máquina. Após uma hora, tinha 1000 cartazes que utilizaria nos muros da cidade, criando imagens modulares e ritmadas concebidas para serem vistas nas diversas velocidades com que percorremos suas ruas – 5, 30, 60 quilômetros por hora...
A obra que encontramos na instalação que ora somos dados a conhecer no espaço expositivo da Funarte em São Paulo atualiza e revoluciona essas experiências. Em Caçada, a cidade se apresenta como um personagem em crise, em esfacelamento no embate com, agora sim, um antagonista que assume a forma de caças F-18 e F14. A escala dessa instalação também flerta com a escala arquitetônica, mas agora num jogo de relações invertido: ao invés de pele que transforma em objeto o muro que cruza o espaço urbano, um revestimento das paredes internas do espaço expositivo o apresenta como uma paisagem, cujo céu provoca o colapso até mesmo das vigas e elementos estruturais que sustentam o teto da galeria.
Diante do vermelho vibrante dessas paredes, poderíamos lembrar das pinturas de Barnett Newman. Nelas, o artista faz do grande formato um campo privilegiado de criação e tensionamento do espaço expositivo. Mesmo que essas telas pudessem ter sua forma, cor e composição apreendidas desde longe, Newman pedia a seu público que se aproximasse delas, que se deixasse ficar imerso na sua escala que, de perto, revela nuances de brilho e cor, ante os sentidos hiper-estimulados e atentos.
Se, então, chegarmos mais perto das impressões de Fernando Vilela, descobriremos como elas se alimentam de seu engajamento constante e inventivo da fatura de gravuras e impressões. Ao desenvolver diversas instalações utilizando xilogravuras de grande formato, Fernando percebeu que o material mais adequado para suas matrizes deveria ser o compensado revestido de uma fina folha de cedro ou outra nobre madeira. Sua escolha torna o gesto que sulca a madeira durante a gravação algo mole e fácil, eliminando a tão valorizada resistência da madeira ao gesto do gravador. Evidente que deve ser assim, Fernando está trabalhando em outra escala, sua relação com a madeira é antes a do sequestrador, que se apropria de texturas para desenrolar uma superfície verdadeiramente gráfica.
Em Caçada, a facilidade do gesto que marca a superfície e o uso intrincado das técnicas de impressão mais contemporâneas se combinam. Textura de madeira, desenho a pincel, linhas vetoriais, cores escolhidas na tela do computador e marcas de impressão em máquina plotter se mesclam, não para se tornarem indiferenciadas, mas para criar um jogo de revelações e veladuras quando estamos no limite entre a percepção da imagem e o vislumbre de sua fatura.
Por fim, o personagem da cidade em conflito com seu algoz, ao ganhar escala e espessura de uma paisagem, talvez sugira a emergência de uma representação pitoresca descolada do encanto pela mutabilidade das paisagens naturais. Fernando está debruçado sobre São Paulo, cidade que provocou Lévi-Strauss a escrever sobre as cidades americanas como lugares em que as construções nem bem estão prontas e já se mostram como ruínas, cidades nas quais as camadas de terra, água, asfalto e concreto se acumulam como signos caricatos de uma modernidade que parece ter se imposto como maldição; e que desfia ainda, na sua vasta e ilimitada expansão urbana, o modelo de uma cidade sem modelos, satisfeita em reproduzir-se. Caçada sugere que o lugar para o encontro com o acaso e o transitório pode ser essa grande cidade, mesmo que aqui não batam tsunamis, apenas caças norteamericanos embrenhados com os cabos, fios e tecidos suspensos diante do céu vermelho. |