Texto Crítico
A leste dos sonhos
Fernando Vilela
Ao lado de um conjunto de pinturas de médio e grande formato (entre 30 × 20 cm até de 2 × 3 m), Fernando Vilela trouxe sequências de pinturas menores, compostas por coleções de retratos de objetos comuns colocados sobre mesas: copos, taças, jarras, garrafas. Em geral objetos de vidro, a maioria deles contendo um pouco de água. Objetos que seriam leves e transparentes, não fosse a matéria pictórica de que são feitos e o modo como são produzidos.
Como todas as pinturas da exposição, essas sequências foram realizadas em camadas espessas, com cores ensombrecidas, travadas pela gravidade – preto, subtons de cinza, vermelho-escuro, verde fenecido –, aplicadas não por meio de pincéis – cuja maciez lhes garantiria uma delicadeza que o artista prefere evitar , mas por golpes bruscos e incisivos de instrumentos variados, como estiletes e espátulas metálicas, próprios para a configuração de formas dotadas de contornos grosseiramente bem definidos.
No que diz respeito a esses objetos cotidianos, não tivessem eles seus limites tão determinados, não se destacariam do ambiente, pois o parentesco do vidro com o ar faria com que se dissolvessem na atmosfera. Mas segundo o parecer do artista, nenhuma atmosfera é límpida. Antes, o contrário: é turva. Sempre. Tampouco os objetos, tão comuns e familiares, são plácidos. Assim, o conjunto de pequenas pinturas de coisas comuns, isoladas, embora exato e conciso, é atravessado por rumores, habitados por uma violência calma que às vezes irrompe com ferocidade.
Na sequência maior, veem-se, entre as várias imagens, a de uma taça explodindo e de carros desintegrados. Conhecemos bem esse fenômeno. Já o vimos, às vezes com encantamento, outras horrorizados: as filmagens em câmera lenta do impacto de uma bala de revólver sobre copos, taças e garrafas; os efeitos das colisões de um carro contra uma parede em diferentes velocidades; uma flor ou semente rebentando e arremessando para longe seus esporos; a explosão de casas e prédios vitimados por bombas aéreas. Cenas exploradas pelo jornalismo televisivo, eficazes em converter nosso espanto em costume.
Filmes de toda sorte – publicitários, científicos, ficcionais – exploram nosso fascínio por esse desmantelamento do tempo, esse modo de insinuar-se por uma fresta para o interior dele, dando-nos a ilusão de observá-lo de dentro.
Fernando explora essa situação em outros conjuntos menores: seis momentos da destruição de uma mesma taça, três de uma pequena garrafa. E com isso, somando-se à sua particular galeria de imagens, sublinha menos o tempo e mais a violência. Carros batidos, paredes despedaçadas, silhuetas de homens armados ou à espreita somam-se aos fios de energia, não por acaso também chamados de fio de tensão, alguns de alta-tensão.
Enquanto caminhamos pela cidade esquecidos dela, submersos em nosso mundo interior, mesmo que ele esteja reduzido a uma simples lista de coisas a fazer, ou um amálgama de ressentimentos e esperanças, esses fios correm por cima de nossas cabeças, distribuindo luzes e sombras, repercutindo informações e decisões, das mais sublimes às mais trágicas, em vidas conhecidas e desconhecidas.
A LESTE DOS SONHOS porque é de lá que vem o sol. Dele, por enquanto, só temos as sombras. Parafraseando o grande Joseph Conrad, vivemos no coração das trevas.
Agnaldo Farias
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