TEXTO CRÍTICO
A "maneira negra" de Fernando Vilela
LUIS PÉREZ-ORAMAS
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Sempre me senti atraído pelo plano e denso oceano de tinta através do qual, entalhando as sombras, os grandes gravadores não cessam de inventar a luz: a luz como verdade mineral, como objeto escondido na noite do mundo, que temos de desenterrar, encontrar sob o escuro peso da vida, nos cantos vespertinos da matéria cavernosa que somos.
Refiro-me ao negrume da gravura, à “maneira negra”, essa forma absoluta dos cinzas. Consiste em um abrupto escurecimento do campo visual, sombra excessiva e impenetrável que tudo cega e através da qual, como por resplandecências ou rasgamentos, entre fissuras de claridade, o visível se destaca e se torna forma na incerteza de uma profundidade de campo que denuncia a vida como algoritmo de mistérios e trabalhosos claros-escuros.
É Rembrandt de Leyde diante de sua primeira Fuga para o Egito, escurecendo uma cena de Seghers, entalhando o já entalhado, transformando a figura de Tobias em exegese icônica do carpinteiro de Belém; é o nicho cego de algumas árvores frondosas nas cenas pastoris de Claude Lorrain; são as formas fantasmagóricas de Goya, uma nuvem escura que deforma o rosto das multidões em seus Caprichos e Tauromaquias; são as arcadas sombrias da noite parisiense nas gravuras de Meryon; o Éden maravilhoso de Rodolfo Bresdin com seus macacos, seu asno e seus veados; alguma dança noturna de Whistler; é a crônica escura da cidade que está por vir de Oswaldo Goeldi; o mar crispado como uma escrita ilegível de Vija Celmins; são algumas noites flutuantes com suas crianças suspensas e a fumaça que paira sobre o sonho nas gravuras de José Suárez Londoño.
Fernando Vilela também se dedica à “maneira negra” e pertence, assim, a essa ilustre família de artistas. Especialmente em suas últimas obras, em que a chicotada impecável da luz, na fotografia, vem se acrescentar à infatigável mordida da madeira, na xilogravura. O fato de que as nervuras da madeira suportem os rastros sombrios da cidade que já foi não deveria passar despercebido: a espessura noturna da tinta filtra aqui a caótica e diurna densidade da metrópole paulista.
Ocorre então um prodígio de condensações: a memória perdida de Josef Albers – de quem provavelmente Lygia Pape extraiu as lições básicas que lhe permitiram, um dia no fim dos anos 1950, ao conceber seus Tecelares, inventar a “maneira negra” para a geometria neoconcreta – ressurge mais uma vez associada, inesperadamente, a outro moderno e a outro esquecido que se torna imagem viva na gravura de Vilela: Willys de Castro.
Ninguém deixará de ver, nas gravuras de Fernando Vilela, entre os veios da prancha e as secas correntes de tinta, ali onde a atmosfera de teia receia suas cidades, os escarpados triângulos arquitetônicos, os angulosos volumes que mal se tocam em seus vértices, as sutis e afiadas diagonais de luz, os mudos alinhamentos de janelas como se fossem adormecidos Objetos Ativos.
Este encontro, que ocorre também em outros territórios materiais, na espessura do óleo, na rústica tela crua de suas pinturas com gravuras, me fez pensar no destino construtivo das formas modernas e na possibilidade que ainda têm de continuar sendo, com a condição de saberem tomar certos caminhos de volta: a natureza construtiva deste trabalho se desvincula da abstração para reencontrar-se com a cidade, com o cenário que habitamos, com o presente que vivemos. Assim ecoa hoje, ainda, na múltipla genealogia da gravura e no inédito ressurgir desta via noturna, ou seja, na “maneira negra” de Fernando Vilela, o esplendor sempre furtivo da luz que nos abriga.
Tradução: Gênese Andrade
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